Publicado originalmente no site da revista ISTOÉ, em 06/04/18
A prisão do demiurgo de Garanhuns
Lula transforma ordem para se entregar num espetáculo
deprimente de afronta à Justiça, ao refugiar-se num QG sindical em São Bernardo
do Campo e montar um cordão humano para impedir o acesso da PF ao local. Tudo
para adiar o inevitável: a ida para trás das grades
Às 22h de sexta-feira 6, Lula ainda estava entrincheirado na
sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, usado como
bunker de resistência à ordem de prisão expedida na quinta-feira 5, às 17h53,
pelo juiz Sergio Moro. O prazo para ele se entregar à Polícia Federal em
Curitiba tinha vencido às 17h. Mas Lula tornava a afrontar a Justiça. Ao
contrário do que aconteceria com qualquer preso comum no Brasil, Lula passou a
ditar as regras de sua própria rendição. Escalou advogados e até o ex-ministro
da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo, para negociar os termos da prisão já
decretada. Até o final da noite, ele se recusava a se entregar e exigia
participar no sábado 8 às 9h30 de uma missa em homenagem à sua esposa Marisa
Letícia, falecida em fevereiro do ano passado. O evento religioso seria
realizado na própria sede do sindicato. Só depois da missa, o petista cumpriria
a determinação judicial – um acinte, por óbvio. O ex-presidente também se
recusava a ir para Curitiba, onde a PF havia preparado uma sala especial, com
todas as regalias, para que ele pudesse começar a cumprir a pena de 12,1 anos
de prisão. Batia o pé para permanecer em São Paulo, numa cela especial do
Estado Maior da PF. Um espetáculo deprimente e inconcebível. No final da noite,
a Polícia Federal informou que Lula não seria preso na sexta-feira 6.
Durante as mais de 30 horas em que permaneceu refugiado no
sindicato, dirigido por ele há 40 anos, Lula envergando um suéter ao estilo
bolivariano de Evo Morales usou milhares de militantes como uma espécie de
cordão humano para impedir o acesso da PF ao local. Ele chegou por volta das
19h de quinta-feira 5 na entidade. Virou a madrugada no interior do prédio, ao
lado de sindicalistas. Dormiu na sala 207, no segundo andar, com banheiro
privativo. Acordou às 7h e tomou banho no local. À medida que os trabalhadores
chegavam para exigir que ele reagisse à voz de prisão, o petista saía na
janela, acenava e mandava beijos.
Aproveitava também para abraçar efusivamente os amigos, como
o ex-chefe de gabinete de seu governo, Gilberto Carvalho, que também o estimulou
a resistência. Em dado momento, sugeriu que os trabalhadores cercassem o
sindicato para impedir a entrada dos policiais. Petistas mais radicais, como a
senadora Gleisi Hoffmann, presidente do PT, e o senador Lindbergh Farias,
pediam para ele não se render. Gleisi chegou a dizer que a PF teria que prender
todos os trabalhadores, se quisesse enviar Lula para trás das grades. Mais um
teatro de absurdos, com a conivência da Justiça, que até aquele momento parecia
contemporizar.
Como um demiurgo, o petista passou o dia sendo paparicado
pelos sindicalistas-companheiros. Às 15h30, lhe serviram o lanchinho da tarde,
com pão de mortadela. Para beber, apenas suco. Lá fora, o cliam era de final de
Copa do Mundo. Os metalúrgicos recebiam caixas e mais caixas de cerveja, além
de carne para um farto churrasco. Mas como todo grande circo armado pelo PT e
congêneres, depois do café Lula simulou que estava passando mal. Foi atendido
pelo médico Gustavo Johnem, alegando pressão alta. “Ele está muito emocionado,
é diabético”, disse o médico, que mandou um enfermeiro ficar de prontidão com
um desfibrilador. Fazia parte do enredo, pois as 17h se aproximavam e ele já
ensaiava um problema qualquer de saúde para não ser levado preso, algo que tem
sido cada vez mais frequentes entre políticos condenados à cadeia. Depois o
petista deu início a uma pantomima de idas e vindas, com o lamentável
beneplácito da Justiça. Primeiro, disse que iria fazer um pronunciamento.
Recuou. Horas depois, voltou a cogitar a possibilidade de descer ao carro de
som, instalado defronte ao sindicato, para discursar. Até às 22h, a
possibilidade havia sido descartada.
Desde a noite anterior, a Polícia Federal e a Polícia
Militar de São Paulo monitoravam os arredores do sindicato, medindo os ânimos e
o risco de confrontos sérios. A tropa de choque da PM aguardava na Rodovia
Anchieta, a poucos quilômetros dali. Viaturas da PF estacionaram nas imediações
do sindicato com agentes dispostos a entrar no bunker petista a qualquer
momento. Os policiais chegaram a planejar como seria o resgate do líder
petista. Para executar a prisão, foi aventada a hipótese de uma invasão aérea.
Recuaram, no entanto, temendo uma cena de confronto com os milhares de
manifestantes ali presentes.
Um helicóptero chegou a fica de prontidão no aeroporto de
Congonhas para o caso de Lula se entregar. A ideia era levar o petista de
jatinho até o aeroporto Afonso Pena de Curitiba. Lá um novo helicóptero
aguardava a chegada do ex-presidente para levá-lo até a sede da PF. Como Lula,
até o final da noite de sexta-feira 6, não havia se rendido, os planos foram
adiados. Enquanto os protagonistas encenavam mais uma farsa dantesca, os
advogados do PT ingressavam com uma série de pedidos de habeas corpus nos
tribunais superiores. No início da noite, o ministro Félix Fischer, do Superior
Tribunal de Justiça, negou um novo recurso, apresentado na manhã de sexta 6
pela defesa do ex-presidente condenado.
Violência petista
O clima de confronto, provocado novamente pelo PT,
desencadeou uma onda de violência em todo o País. Jornalistas e manifestantes
contrários a Lula foram agredido por integrantes de movimentos sociais, como
MTST e MST. O caso mais grave ocorreu na frente do Instituto Lula, na quinta 5,
quando um homem sofreu traumatismo craniano durante um confronto iniciado em
meio a chegada do senador Lindbergh Farias (PT-RJ) ao local. Àquela altura,
Lula já havia saído do Instituto que leva o seu nome. A vítima foi empurrada
por um petista não identificado e bateu a cabeça na caçamba de um caminhão que
passava na rua. Ela teve que ser operada no Hospital São Camilo, situada nas
proximidades. O caso foi registrado no 16º distrito Policial como lesão
corporal. Segundo o último boletim médico, a situação da pessoa agredida era
grave. Na mesma noite, repórteres e fotógrafos encarregados da cobertura da
prisão de Lula sofreram agressões. Na sede da CUT, em Brasília, 30 manifestantes
depredaram um carro do jornal Correio Braziliense. Um cinegrafista do SBT e um
fotógrafo da agência internacional Reuters também foram hostilizados. Em São
Bernardo do Campo, um fotógrafo da agência Estadão Conteúdo Nilton Fukuda foi
atingido por ovos. A cena foi filmada e foi parar nas redes sociais. O agressor
vestia camiseta da CUT. Entidades jornalísticas, como Abert, Abraji, Aner e
ANJ, repudiaram as agressões. “Inaceitável”, disse a Abraji em nota.
A ousadia petista chegou a sugerir a paralisação do País em
protesto contra a prisão de seu maior líder. No Paraná, mais de 360 trechos de
rodovias estaduais e federais foram bloqueados por militantes da CUT e do MST.
Mas ficou por isso mesmo. As ações não prosperaram em outras regiões. O
atentado mais insolente ocorreu na tarde de sexta-feira 6. Três ônibus da CUT
pararam em frente ao prédio onde reside a presidente do Supremo Tribunal
Federal, ministra Cármen Lúcia, em Belo Horizonte, e jogaram tinta vermelha nas
paredes externas, manchando a fachada. Conforme o coordenador do MST em Minas,
Silvio Netto, o protesto foi uma forma de mostrar que os trabalhadores estavam
dispostos a lutar. “Cármen Lúcia se tornou a inimiga número um dos mineiros”,
disse. Segundo o movimento, cerca de 450 sem-terra participaram da
manifestação.
Cela especial
Se as exigências de Lula forem frustradas e ele for levado
para Curitiba, na sede da PF, o petista será acomodado numa sala especial com
15 metros quadrados e banheiro privativo, normalmente utilizada por agentes da
PF de outros estados em missões no Paraná. No local, um beliche foi retirado
para a colocação de uma mesa e cadeiras. Uma cama simples foi mantida. O cômodo
não possui grades, tem janela voltada para o corredor e dispõe de câmeras
internas, com monitoramento e guardas na porta por 24h.
Em Curitiba, Lula ficará completamente separado dos demais
presos, que ocupam a carceragem no segundo andar. Na sede da PF, estão outros
sete investigados da Lava Jato, entre eles o ex-ministro Antonio Palocci e o
ex-presidente da OAS Léo Pinheiro. Lá, o petista terá direito a duas horas
diárias de banho de sol, em momento distinto dos demais presos. A intenção é
realmente evitar que o ex-presidente tenha contato com outros detentos. Outra
regalia: o presidiário não precisará usar uniforme, como é usual no sistema
prisional, e comerá a mesma marmita servida na carceragem. As visitas dos
advogados são autorizadas quase que diariamente. Eles poderão levar livros,
roupas, cobertores e alguns alimentos. Tudo será inspecionado por policiais federais
antes da entrada na sala especial. As visitas de parentes acontecerão às
quartas-feiras. De acordo com o chefe da equipe de custódia e escolta da PF de
Curitiba, Jorge Chastalo: “A sala é simples, mas tranquila e agradável,
bastante humanizada”. Lula começa a experimentar uma vida de detento, mas com
um tratamento bem melhor do que o dispensado aos demais. Uma tradição à
brasileira.
A primeira prisão de Lula
Em 19 de abril de 1980, há exatos 38 anos , Lula, então
líder sindical à frente de uma greve de metalúrgicos na região do ABC, foi
preso e levado ao Dops, em São Paulo, onde ficou 31 dias detido por ter sido
enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Era o auge do regime militar. A greve
organizada por ele, que presidia o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde
desta vez se entrincheirou, tinha como objetivo a reposição salarial e redução
de jornada. Ao desafiar os militares, o ex-presidente estava ciente de que
poderia ir para prisão a qualquer momento. Chegou a ser orientado a deixar o
País, mas não quis. Foi preso no 17º dia da paralisação. Na época, outras 12
pessoas do movimento sindical também foram presas. Lula chegou a ser condenado
por “incitação à desobediência coletiva das leis”, mas, pouco tempo depois, o
Superior Tribunal Militar (STM) anulou todo o processo. Em depoimento na
Comissão Nacional da Verdade, em 2014, Lula afirmou que sua prisão foi uma
motivação para a greve continuar. Na cadeia, Lula ficou sob a vigilância do
então delegado Romeu Tuma, que nunca maltratou o ex-presidente no cárcere. Pelo
contrário, o petista foi liberado até para ir ao enterro da mãe, Eurídice
Ferreira de Mello, a dona Lindu.
Lula é o sexto ex-presidente brasileiro a ser preso e o
primeiro a cumprir pena por um crime comum. Ao longo da história do País,
quatro ex-presidentes foram condenados após deixar o cargo. O marechal Hermes
da Fonseca (1855-1923) permaneceu encarcerado por seis meses por decisão do
então presidente Epitácio Pessoa. Em 1932, durante a Revolução Constitucionalista,
Arthur Bernardes (1875-1955) ficou detido por dois meses. Outras duas prisões
de ex-presidentes aconteceram no período de exceção do regime militar.
Juscelino Kubitschek (1902-1976) foi detido em 13 de dezembro de 1968, dia de
emissão do Ato Institucional Número 5 (AI-5). Passou nove dias em um quartel e
um mês em prisão domiciliar.
Jânio Quadros (1917-1992) também foi detido em 1968. Passou
120 dias encarcerado em Corumbá (MS). Apenas Washington Luís (1869-1957), da
foto ao lado, foi detido ainda no exercício da função. Deposto pela Revolução
de 1930 e forçado a abandonar o Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro. Viveu
anos no exílio antes de retornar ao País.
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